Por Marcio Ortiz Meinberg
Nas estantes da casa de meus avós podiam se encontrar de tudo: livros de engenharia, história, gramática, romances policiais, sociologia, economia, filosofia, política, temas de atualidades (atuais na época que foram comprados...), guias de turismo, auto-ajuda, clássicos da literatura Brasileira e portuguesa, agricultura, biologia, genealogia de nossa família, enciclopédia, dicionários (em várias línguas) e até mesmo uma bíblia.
Havia uma estante em que ficavam os volumes mais bonitos, livros de capa dura, encadernados em cores escuras com letras douradas. Na outra estante ficavam os livros de capa flexível, cada uma com sua cor, totalmente desarrumados e misturados entre cores e temas diferentes. Essa estante confusa sempre foi a minha favorita.
Antes mesmo de saber ler, eu cultivava o hábito de piorar a bagunça daquela estante, pois acreditava que a velha casa de meus avós guardava um tesouro escondido e que o mapa provavelmente estaria atrás de alguma tábua solta entre os livros.
Minha mãe sempre me contou histórias da época da Ditadura, quando meu avô corajosamente escondia comunistas e perseguidos políticos e os auxiliava na fuga. Minha mãe contou a história das ameaças que a família recebeu do facínora Cel. Erasmo Dias, que nunca perdoara meu avô por ter denunciado as violências da invasão da PUC-SP pelas tropas da repressão. A história que mais me fascinou foi a do pequeno livrinho vermelho que meu avô trouxe da China e que escondia cada vez em um cômodo da casa. Sempre tive vontade de encontrar aquele livrinho!
Quando fiquei mais velho, comecei a saquear os livros de meu avô. Primeiro tomei emprestados alguns volumes da Barsa, depois peguei todos os volumes do dicionários inglês-português e português-inglês, li a maioria dos romances até que um dia comecei a ler sociologia. Visitando a estante bagunçada, encontrei alguns livros que ficavam mais ao fundo, bem fora da vista, quase que escondidos (ou escondidos mesmo, por que não?). Pedi permissão a meu avô para levar aqueles livros e ele autorizou, desde que não levasse os mais pesados: de Marx e Gregório Bezerra (ele citou ambos expressamente). Tudo bem, levei os de Engels!
Alguns meses mais tarde, após terminar Engels, tomei coragem e peguei também os de Marx e Bezerra. Levei até mesmo O Capital! Foi mais ou menos nessa época que perguntei a meu avô sobre o pequeno e legendário livrinho vermelho. Ele me contou que se tratava do Livro Vermelho de Mao Tse Tung, em versão espanhola, que ele trouxera da China após uma viagem. Quando perguntei onde estava, ele me disse que dera de presente para algum comunista em fuga.
Se algum dia alguém quiser procurar o responsável por minha formação teórica e por minhas convicções políticas-ideológicas, o culpado certamente é meu avô.
Na semana seguinte à morte de meu avô, comparecemos à sua casa para um almoço de família com minha avó. Observando a estante, minha avó me autorizou a pegar todos os livros que me interessassem. Na ocasião, não havia sobrado muita coisa que me interessava, afinal, tinha passado a vida pegando livros daquelas estantes. Mesmo assim, aproveitei para adquirir livros de Malinowsky e Levi-Strauss (que na época sequer saberia dizer qual a área de estudo deles) e um velho volume de Rousseau que eu tinha esquecido de saques anteriores.
Enquanto tirava o pó daqueles livros recém-adquiridos, notei bem na frente, que jazia em cima da uma pilha um pequeno livrinho vermelho. Curioso, peguei para ver sobre o que era (não era muito comum encontrar livros novos naquela estante tão explorada). Qual não foi minha surpresa que o título daquele livrinho vermelho era “Las Citas del Presidente Mao Tse-Tung”.
Após a morte de meu avô, eu finalmente encontrei o pequeno e legendário livrinho vermelho que ele escondia cada vez em um cômodo diferente.